quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Cosplay - Na pele de Lara Croft


Quando tinha 9 anos pedi aos meus pais, pelo Natal, uma Playstation – a primeira de todas, que tinha surgido há já um aninho ou dois. Junto com a consola vinha também um jogo de luta, o Tekken 3, que comecei a jogar com bastante frequência. Nada em mim fazia adivinhar que fosse gostar de jogos de luta, mas a verdade é que gostei, e guardei sempre alguma nostalgia com a franquia dos jogos Tekken.
 
No entanto, era o único jogo que tinha, e pouco tempo depois ofereceram-me aquele que foi o meu segundo jogo: Tomb Raider III – The Adventures of Lara Croft. Uma mulher esbelta e forte, com um sotaque britânico refinado e atrevido, uma trança enorme, que percorria vários pontos do mundo em demandas por relíquias míticas e segredos lendários por sítios exóticos, interessantes e cheios de perigos em cada esquina. Perigos esses dominados com um atrevimento natural e uma arrogância confiante e divertida. E com pistolas. Duas!

A Lara Croft em Tomb Raider Underworld (2008) - uma versão mais dark da imagem clássica da heroína

O meu cosplay de Tomb Raider Underworld

Tomb Raider III - The Adventures of Lara Croft (1998) : Apesar de ser o terceiro da franquia, foi o meu primeiro jogo TR, com o qual tudo começou.

Foi impossível não gostar da Lara Croft assim que a conheci. Vivia aquelas aventuras e vibrava com o passar de cada nível. – Apesar de isso só passar a acontecer a partir do momento em que os meus pais se lembraram da existência de uma coisinha chamada Cartão de Memória, sem o qual perderia todo o jogo conseguido, em caso de Game Over ou de simplesmente desligar a consola. Digamos que sofri muito até se terem lembrado de me comprar esse artefacto milagroso.

Estas heroínas fortes e engraçadas – a Lara do Tomb Raider e a Xiaoyu do Tekken – rapidamente me cativaram. A Xiaoyu representava o meu lado fofo e inocente, com o plus de que ainda dava umas belas tareias, enquanto que a Lara representava uma vontade enorme de ver o mundo, dominar tudo e ser destemida. Tendo eu sido uma criança que cresceu cheia de medos e ansiedades, que injustamente me definiam perante os outros, vi naquelas personagens aquilo que eu queria ser. Que no fundo era, sem ainda o saber.
A Xiaoyu dos jogos Tekken, contra a qual ninguém me vencia

E por muito que amasse de morte coisas adoráveis, femininas e triviais como brincar com bonecas, vestir-me de princesa, desenhar ou fazer balões de sabão no quintal da minha avó, descobri um outro lado meu, que gostava de jogos de luta e de viver situações de perigo - no écran. Foi graças à Playstation e a estes dois jogos que descobri essa grande parte da minha personalidade.

Sempre gostei de me mascarar e de me vestir, numa primeira fase, como tudo o que fossem princesas, e numa fase mais avançada, como heroínas, nem sempre já tão femininas. Nos meus tempos da creche, com 3 e 4 anos, fazia birras porque queria vestir saias ou vestidos todos os dias – estes últimos ainda hoje são uma perdição para mim – porque queria sentir-me como uma princesa ao vestir-me como elas o mais possível. Sem nunca ter tido UM único vestido de princesa no Carnaval – um dos meus maiores desgostos de criança (tive um disfarce de dama antiga horrendo, mas isso não contava como princesa porque a saia não tinha roda, imagine-se) – eu própria, durante as mil brincadeiras com que me entretinha sozinha, vestia-me com as roupas que tinha, conjugando-as de modo a que fossem o mais parecido possível com algo que lembrasse princesas. Até os penteados recriava.

Sempre gostei de disfarces, de viver, por momentos, na pele de outros que não eu, imitar as vozes que ouvia nas cassetes da Disney, ao ponto de as papaguear do princípio ao fim (e ainda hoje talvez seja capaz de reproduzir imensas cenas de vários filmes), fazer pequenos teatros com o meu irmão, inventar mil ideias para disfarces e festas caseiras no Halloween – coisa que praticamente mais ninguém fazia na super pacata da minha vila. Tudo premonições do meu futuro gosto pelo Teatro e pelo Voice Acting (Dobragens).

Quando há 5 anos soube da existência de uma coisa chamada Cosplay, soube instantaneamente que tinha de fazer parte daquele universo. E foi numa conversa casual entre amigos, onde um deles me disse que eu dava uma boa Lara Croft para o Carnaval, que tive a certeza daquilo que queria fazer a nível de cosplay.


Cosplay é uma contracção das palavras inglesas costume (traje) e play (representar). É uma subcultura originalmente japonesa centrada em encarnar personagens dos mangás, animes, séries e videojogos, através do disfarce. É um hobby no qual pessoas com o mesmo tipo de gosto cultural exibem as próprias criações de fatos feitos à mão, tiram muitas fotografias e têm a possibilidade de participar em concursos de melhores recriações.

O meu primeiro e único cosplay até hoje foi sempre o de Lara Croft. E não foi só há 5 anos. Assim que fiquei fã de Tomb Raider aos 9-10 anos, dias houve em que me tentava vestir como a Lara, a correr pela minha casa com os braços esticados em frente, a disparar balas invisíveis dos dois indicadores das minhas mãos. Uns calções de praia amarelos, – porque eram a única cor de calções que tinha que mais se aproximava da cor bege/caqui dos dela – e um top simples azul. Uma pequena mochila castanha, e uma trança, claro. E pistolas que roubava dos brinquedos do meu irmão – uma sempre diferente da outra, porque ter duas pistolas de brinquedo iguais era pedir muito. Ou ainda um par de pistolas do século XVIII que os meus pais - que me passaram a cromisse pela História - tinham, em réplica, para decorar a sala. (ainda hoje não sonham que brinquei com elas!)


E passava horas a imaginar que a minha casa era a mansão Croft. Uma vez cheguei à loucura de desenhar e pintar a aguarelas TODOS os items  dos inventários de TODOS os jogos de Tomb Raider que ia coleccionando, num tamanho considerável, e de espalhá-los por toda a casa, nos sítios mais absurdos e por vezes óbvios, para depois os apanhar a todos, imaginando-me nas aventuras. O meu irmão era, quase sempre, o meu parceiro de “jogo”. Memórias muito felizes de brincadeiras, pouco comuns mas puras, que fizeram muita da nossa infância.

Apesar de gostar do mundo dos videojogos, nunca me considerei fanática. Até porque a idade ia-me cada vez mais afastando da vontade dos jogos. Foi o meu irmão quem, pouco depois, passou a continuar a demanda pela colecção de Tomb Raider (e outros jogos). Continuei sempre fã e a seguir as jornadas da Lara, sem perder pitada, mas com o comando passado para as mãos dele.

O meu cosplay de Lara Croft do jogo Tomb Raider (2013), um remake da história original

Porquê o cosplay e porquê a Lara Croft? – perguntou-me um jornalista do Expresso este mês, no meu dia na Comic Con. Bem, porque o cosplay, tal como me acontece com o teatro, funciona para mim como um escape à vida real do dia a dia comum. É poder ser a Lara Croft por um dia, saber que é ela quem as pessoas vêem quando me olham, sem ninguém saber quem sou, como me chamo ou de onde venho. É um modo de me expressar através do carinho pela personagem que encarno. É um modo divertido de conhecer e comunicar com pessoas de todo o país ou até mesmo de vários pontos do mundo.

Com o meu super herói preferido, o Spider-Man, representado por um dos maiores cosplayers portugueses deste personagem, o @ptarachnid, Guilherme Calçada. Conhecemo-nos em 2016 no Iberanime. Ficou a amizade e o reencontro 3 anos depois, na minha segunda ida à Comic Con, há duas semanas. 

A Lara é o epítome da aventura, elegância e glória. É forte, corajosa, atlética e culta. Também tem o bónus de ser curiosa pelo mundo, tem sede de aventura, uma confiança que não a faz parar perante nada nem ninguém. Domina mil idiomas, tem um conhecimento infindável pela História e cultura de vários países – muitas características que temos em comum. Não se conforma com os limites do mundo, impostos pela Humanidade. Desafia a Natureza e a Mitologia com um estilo inigualável. E vence sempre. E mesmo sendo uma mulher forte e de inteligência impressionante, a Lara também tem um lado misterioso, divertido, charmoso e amável, por debaixo de toda a imagem badass que lhe é característica. Cai muitas vezes em sarilhos, como muitos de nós também. Tem limitações e sentimentos que muitas vezes prefere não deixar transparecer. E cede bastante às emoções humanas no jogo reboot que veio transformar toda a franquia Tomb Raider, em 2013, continuando pelas sequelas de 2015 e 2018 (Rise of The Tomb Raider e Shadow of the Tomb Raider).

No reeboot de Tomb Raider, a Lara é uma recém-licenciada, que nunca pegou numa arma antes, e que parte na sua primeira aventura, onde vai descobrir quem realmente é, numa luta agonizante pela sobrevivência.

A Lara é o pacote completo de beleza, inteligência e força, e a perdição de muitos homens – os fictícios com quem se encontra nas aventuras ou os próprios fãs do mundo real. Durante anos foi conhecida pelos seus atributos físicos humanamente inatingíveis – algo hoje em dia quase condenável pelas muitas mulheres altamente sensíveis e frustradas deste mundo que vêem objetificação em tudo o que é mulher mais atrevida, voluptuosa, confiante e sexy. Foi uma boneca altamente sexualizada pela indústria que a criou, verdade. Mas foi essa imagem – a meu ver divertida, livre e carismática - que a estabeleceu como A Lara Croft, e pessoalmente só tenho a achar divertido e inteligente o modo como foi concebida pela equipa da Eidos e da Crystal Dinamics. Conseguiram algo único e inigualável – colocaram esta personagem num trono, de onde nunca nenhuma outra lhe tirará a coroa.

Em cima, a Lara Croft em Tomb Raider (2013); Em baixo, a minha representação da mesma versão.


Onde muitos possam ver (erradamente) na Lara uma degradação à imagem da mulher, a criação de expectativas irreais ao corpo das mulheres, a sexualização da mulher como algo negativo e redutor, eu vejo poder, força, sensualidade e confiança – algo que devia ser inspirador para as mulheres. Acho que as mulheres não devem ter vergonha de mostrar a sua sensualidade e que há algo de poderoso em sentirmo-nos bonitas enquanto ultrapassamos obstáculos, fazendo uso do nosso conhecimento, sabedoria, sensatez e cultura. A Lara é isso. Apenas há que ter em conta que se trata de uma boneca irreal. Que não deixa de ser inspiradora só porque veste soutien copa DDD.  

Conceberam uma boneca única, reconhecível em qualquer parte do mundo, e acarinhada por milhões de pessoas. Que se materializou no grande écran com as interpretações da Angelina Jolie, e mais tarde da Alícia Vikander, esta última numa versão mais humana e realista, adaptada (ainda que muito pouco) do jogo reboot de 2013. Não há muitas mulheres como ela, especialmente tratando-se de uma personagem fictícia, mas é isso mesmo que faz dela um ídolo, conhecida por ser a figura feminina mais icónica do mundo dos videojogos.

Lara Croft ganhou vida no grande écran, primeiro na pele de Angelina Jolie em 2001 (à direita), e mais tarde com Alícia Vikander, em 2018 (à esquerda). 

O sucesso e o carinho que recebo sempre que me apresento como Lara em eventos de cosplay tem de ser das melhores sensações de sempre; À minha volta, por onde vou passando, sussurram-se ou gritam-se vários “Olha, a Lara Croft!”. E seguem-se interpelações, abordagens mais ou menos efusivas, pedidos de fotos, debates infindáveis sobre os “meus” jogos e o quão difícil foi passar o nível X, Y ou Z, como se eu mesma fosse a responsável pelas aventuras que jogaram. “Fiz-te morrer imensas vezes, foi um jogo difícil de passar” ou “Porque é que tu e o Alex não ficaram juntos? Não foi justo!” são alguns dos desabafos que ouço dirigidos à Lara que sou para eles, naquele momento. Perguntas pessoais não vão para além de questões sobre o meu fato -  como o fiz, quanto tempo demorou a ser feito, como podem fazer igual. Só em entrevistas para canais de Youtube, jornais ou revistas, é que os repórteres são os únicos que ficam a saber da minha verdadeira identidade e de toda a história por detrás do meu carinho por Tomb Raider.



Sem nunca ter tido grande engenho na criação da minha caracterização, tenho a vantagem de ter características físicas com as quais consigo trabalhar para obter uma imitação credível da Lara Croft – em qualquer uma das suas versões, na verdade. Tenho um físico atlético, que remete para a silhueta dela, sem (obviamente) exageros irreais; O rosto comprido, “facilmente maquilhável e trabalhável para o écran” como sempre me foi dito no curso de Comunicação, e as sobrancelhas angulares são outro plus que fazem toda a diferença. A tez e o cabelo morenos também ajudam. Também tenho um olhar doce, que consegue ora parecer vulnerável, ora intimidante, conforme as versões da personagem.



Para o resto do público, não me chamo Melissa. Não importa o que faço, de onde venho, as minhas opiniões, pensamentos, circunstâncias de vida. A minha identidade ali e naquele momento é Lara Croft - arqueóloga, exploradora e saqueadora de túmulos. Colecciono artefactos, descubro mistérios do mundo enquanto, muitas vezes, o salvo – com duas pistolas, metrelhadoras, bazucas ou um simples arco de setas – e vivo numa mansão Croft. Por umas horas posso ser e ter tudo isso. É por isso que a Lara Croft é a minha heroína preferida, e o passaporte mais que perfeito para entrar no mundo fantástico da arte do Cosplay.